Letícia Rodrigues da Silva (Dra em Políticas Públicas pela UFPR e ex-gerente de regulação da ANVISA)
Peter Rembichevisk (Dr em ciências da Saúde pela UnB e Especialista em Regulação da ANVISA)
Luis Eduardo Rangel (Engenheiro Agrônomo, ex-Secretário de Defesa Agropecuária e ex-Coordenador-Geral de Agrotóxicos e Afins do MAPA).
Um dos temas mais controversos sobre agrotóxicos trazidos com frequência na mídia, diz respeito ao registro de determinadas substâncias em alguns países e o não registro ou proibições das mesmas substâncias em outros territórios. Para além dos parâmetros de avaliação de risco ou de perigo; da diversidade da incidência de pragas e doenças em cada continente e das estratégias comerciais dos registrantes, encontram-se os procedimentos administrativos de cada país ou bloco econômico para considerar uma substância “não aprovada/não autorizada” ou proibida.
Ao contrário do que se propaga, na maioria das situações a “não aprovação” refere-se a substâncias: 1) nunca avaliadas; 2) para as quais não houve pedido de renovação de registro; ou 3) para as quais não ocorreu o atendimento por parte da empresa requerente a requisitos burocráticos, como o não pagamento de taxas para manutenção de registro.
Estas situações precisam ser distinguidas de “proibição/banimento” decorrente das avaliações de risco ou de perigo realizadas pelos órgãos governamentais dos países.
Com o objetivo de trazer maior clareza ao tema, neste artigo efetua-se a comparação dos ingredientes ativos registrados no Brasil para uso como agrotóxicos e a sua situação regulatória na União Europeia, nos Estados Unidos (Agência de Proteção Ambiental), Austrália, Japão e Canadá.
Para realizar a comparação foram usadas as seguintes bases de dados públicas: Brasil monografias Anvisa e Agrofit dados abertos do Ministério da Agricultura; União Europeia – Database Pesticides da Agência de Segurança Alimentar Europeia – EFSA; Estados Unidos base Pesticides Research da Agência de Proteção Ambiental; Austrália base dados da Australian Pesticides and Veterinary Medicines Authority (APVMA); Japão – Food and Agricultural Materials Inspection Center (FAMIC) e na base da agência canadense – Health Canada.
Para as análises comparativas foram considerados os ingredientes ativos químicos, destinados ao uso no controle de alvos biológicos considerados nocivos, dessecantes e reguladores de crescimento de uso na produção agrícola. Não foram incluídos, portanto, os bactericidas, ativadores de plantas, elicitores, domissanitários, produtos semioquímicos, biológicos e de origem orgânica.
O fato de uma substância constar como não aprovada ou não registrada nas base dados de algum país/bloco não significa que elas tenham sido submetidas às avaliações de perigo/risco pelas autoridades governamentais. Em outras palavras, a não autorização de uso de um ingrediente ativo por um país ou bloco não implica necessariamente afirmar que a substância é inaceitavelmente nociva à saúde ou ao meio ambiente. Tomando como exemplo a base de dados europeia, uma das mais citadas para fins de comparação entre os produtos registrados no Brasil e os protetores de plantas (assim denominados no bloco econômico), existem naquele conjunto de informações centenas de substâncias que jamais foram avaliadas no âmbito daquele continente.
Os pesticidas agrícolas são desenvolvidos e registrados nos países para atender às necessidades dos cultivos agrícolas produzidos naquele território e dos alvos biológicos de afetam aquelas culturas. Além da diferença entre as culturas produzidas de uma região e para outra, as condições agrícolas em relação à flora, fauna e clima em diferentes países resultam em alvos biológicos nocivos diversos, requerendo, portanto, ingredientes ativos diferentes para o seu tratamento.
Grande parte dos equívocos sobre registros de pesticidas derivam da própria aplicação da legislação europeia
A aproximação das legislações dos Estados Membros Europeus percorreu um longo caminho, desde a década de 1960 (Diretiva 67/548/CEE) com os seis países signatários do Tratado de Roma; até Diretiva nº 414, de 15 de julho de 1991 com a previsão de que todas as substâncias ativas autorizadas em qualquer dos Estados Membros deveriam passar por uma avaliação comunitária no máximo em 12 anos, após a publicação. Enquanto não avaliados no âmbito da Comissão Europeia, todos os ingredientes ativos, registrados em quaisquer países integrantes do Bloco, poderiam ser utilizados. Para isso os Estados Membros deveriam notificar à Comissão as substâncias registradas em seus territórios, oportunidade em que foi formada uma lista com aproximadamente 900 ingredientes ativos (originando a base de dados europeia de ingredientes ativos).
À medida que os ingredientes ativos eram submetidos à avaliação comunitária, passavam a integrar a lista de substâncias ativas aprovadas em todo o Bloco Econômico. Publicações periódicas de planos de trabalho indicavam os ingredientes ativos que deveriam ser submetidos à avaliação comunitária.
Muitas substâncias ativas permaneceram em uso nos Estados Membros até exaurirem-se todos os prazos procedimentais, sem que tenham sido submetidas às avaliações do Bloco. Contudo, os ingredientes ativos notificados inicialmente pelos Estados Membros e que não foram avaliados pelos comitês e autoridades da Comunidade passaram a constar na base de dados europeia como “substâncias não aprovadas”.
Outras substâncias passaram apenas pela avaliação de checklist, e por não apresentarem todos os estudos requeridos, foram sumariamente excluídas sem terem sido submetidas à avaliação do perigo/risco. A ausência de aprofundamento na situação regulatória de cada ingrediente ativo, leva a interpretações equivocadas de que substâncias não aprovadas no âmbito Europeu tenham sido “proibidas” por não atender aos requisitos de saúde e/ou de meio ambiente.
No período de 12 anos, previstos na Diretiva de 1991, das 893 substâncias em uso nos Estados Membros, 443 substâncias não foram incluídas no Anexo I (Anexo que contempla a relação de substâncias autorizadas no âmbito comunitário) por ausência de solicitação e entre 2011 e dezembro de 2021, outras 83 substâncias não foram renovadas por ausência de pedidos ou por desistência dos pedidos antes da avaliação.
Tabela: Quantidade de substâncias sem pedido de avaliação ou renovação de registro e com desistência do pedido de avaliação citadas em cada regulamento
Regulamento | Substâncias sem pedido de avaliação ou renovação | Substâncias que tiveram desistência do pedido antes da avaliação |
Regulamento nº 3600, de 11 de dezembro de 1992 | 41 | |
Regulamento nº 2076, de 20 de novembro 2002 | 297 | |
Decisão da Comissão nº129, de 30 janeiro de 2004 | 105 | |
AIR II – Regulamento (EU) nº1141, de 7 de dezembro de 2010 da CE | 11 | |
AIR III – Regulamento EU 686, de 26 de julho de 2012. SANCO/10148/2014 – Rev., de 12 de abril 2017 | 5 | 5 |
AIR IV – Regulamento nº 183, de 11 de fevereiro de 2016 SANTE-2016-11734 – rev.26, de outubro de 2021 | 38 | 17 |
No ano de 2009, ainda sem ter concluído as avaliações comunitárias, a União Europeia alterou os critérios de avaliação das substâncias ativas, adotando a avaliação do perigo como determinante, em substituição à avaliação do risco utilizada até então (Reg. nº 1107/2009, entrou em vigência em 2011).
Essa legislação passou a exigir a apresentação de novos estudos, cujos custos para a geração desencorajaram a permanência de moléculas de menor rendimento e/ou com suas patentes já vencidas. Em outras palavras, ao invés de arcar com os custos para a manutenção de ingredientes ativos de menor retorno financeiro, os fabricantes investem no desenvolvimento de novas moléculas que possuem períodos de exclusividade.
Com isso, tem se observado uma queda expressiva no número de pedidos de renovação de registro, bem como uma maior desistência de apresentação dos estudos que suportariam esses pedidos.
Os agrotóxicos registrados no Brasil
No Brasil existem atualmente 279 ingredientes ativos (IAs) químicos registrados como agrotóxicos de uso agrícola. Embora existam 456 monografias (monografias são resumos, publicados pela Anvisa, onde constam as especificações técnicas dos ingredientes ativos, tais como fórmula química, usos a que se destinam, culturas, limites de resíduos dentre outras informações), destaca-se que 112 são de origem biológica, semioquímicos (ex.: feromônios), extratos vegetais ou substâncias naturalmente presentes nas plantas, e 43 que não se destinam ao uso agrícola (são usados como preservantes de madeira, domissanitários, campanhas de saúde pública ou em ambientes hídricos), além de outros classificados como inorgânicos, sem restrição de uso (ex., enxofre e compostos de cobre).
Os 279 ingredientes ativos químicos registrados no Brasil como agrotóxicos destinam-se a diferentes finalidades (denominadas classes de uso), conforme gráfico.
Gráfico: Agrotóxicos registrados no Brasil por classe de uso
A maioria destes ingredientes ativos estão registrados a mais de 20 anos no Brasil e a saída do mercado destas substâncias é uma constante nos países, com maior frequência devido à perda de eficácia, entrada de novas moléculas, dinâmica de mercado de custos de matérias primas, ausência de fabricantes do que por avaliações de risco ou exigências regulatórias.
No Brasil nos anos de 2002 a 2022 saíram mais ingredientes ativos do mercado do que entraram novos. As monografias de substâncias ativas que não possuíam mais registros de produtos técnicos e formulados excluídas no período correspondem a 79 ingredientes ativos, enquanto no mesmo período ingressaram no mercado brasileiro, 70 novos ingredientes ativos para uso como agrotóxicos. Dos 79 ingredientes ativos excluídos, 12 foram em decorrência de reavaliações toxicológica e/ou ecotoxicológica e 65 exclusões, por desuso da substância.
Os pesticidas registrados diferem entre os países
Quando comparados os 279 IAs químicos de uso agrícola registrados no Brasil com o seu status regulatório na União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão, as diferenças são evidentes. Enquanto na UE 136 substâncias registradas no Brasil são aprovadas (143 não estão aprovadas), nos Estados Unidos e Canadá são aprovadas, 218 substâncias. No Japão são aprovadas 205 e na Austrália, 228 ingredientes ativos dos registrados no Brasil.
Na União Europeia é onde existe o maior quantitativo de substância ativas registradas no Brasil e não aprovadas naquele Bloco. As classes de uso com os maiores percentuais de não aprovação são os herbicidas e inseticidas, respectivamente, 54% e 58% das substâncias registradas no Brasil.
Dentre as substâncias registradas no Brasil e não aprovadas na UE, 71% nunca foram avaliadas no âmbito da EU ou não foi solicitada a renovação de registro (respectivamente 27 e 74 IAs). A avaliação do risco não foi concluída para 25 substâncias. E para 16 ingredientes ativos, as autoridades europeias entenderam que não foi possível descartar os riscos para compartimentos ambientais ou para a saúde de trabalhadores, transeuntes ou consumidores.
As mesmas substâncias registradas no Brasil também foram comparadas com a situação regulatória nos Estados Unidos e do Canadá. Em ambos os países, encontram-se registradas 218 substâncias ativas para uso agrícola, enquanto 61 não possuem registro. Entretanto, conforme demonstram os gráficos, não se tratam das mesmas substâncias, havendo diferenças inclusive entre as classes de uso (37 ingredientes ativos não possuem aprovação nos dois países). Nos EUA e no Canadá não estão autorizados, respectivamente, 19 e 14 inseticidas; 16 e 22 herbicidas e 18 fungicidas, conforme gráficos:
No Japão 74 ingredientes ativos registrados no Brasil não possuem registro, enquanto 205 substâncias possuem registro tanto no Brasil quanto naquele país. Já, na Austrália 51 ingredientes ativos não possuem registro, enquanto 218 possuem registros simultâneos. As classes de uso das substâncias não aprovadas encontram-se a seguir:
A aprovação simultânea nos Estados Unidos, União Europeia e Canadá ocorre para 111 ingredientes ativos. Já, 42 ingredientes ativos não são aprovados na União Europeia e nos Estados Unidos. Entretanto, os mesmos ingredientes ativos possuem registros na Austrália, Canadá ou Japão. Do universo de substâncias autorizadas para uso agrícola no Brasil, 11 ingredientes não possuem registros na Austrália, Canadá e Estados Unidos, mas possuem autorizações no Japão. E uma substância (regulada por convenção internacional) não possui aprovação na União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão. Os números nas intersecções demonstram a quantidade de ingredientes ativos não aprovados em mais de um país.
Pesticidas registrados em outros países nem sempre são aprovados no Brasil
A não simultaneidade de registros ocorre em todos os países, inclusive com substâncias autorizadas em outros países e não registradas no Brasil, a exemplo de 90 ingredientes ativos que são registrados na União Europeia e não possuem registros em território brasileiro (quatro são ingredientes ativos novos; 77 são substâncias nunca submetidas para registro no país, nove substâncias tiveram as monografias excluídas por não possuírem mais produtos técnicos e formulados responsáveis pela manutenção dessas especificações.
No Japão enquanto 205 ingredientes ativos possuem simultaneidade de registro com o Brasil, estão registrados outros 220 ingredientes ativos químicos que não possuem registros aqui, de acordo com a última atualização de 1º de junho de 2022. No entanto, raramente ocorre divulgação de que a EU ou o Japão, outro país, possuem autorizados ingredientes ativos não registrados no Brasil.
A ausência de registros de pesticidas em um país ou outro não traz conclusões sobre sua segurança
A ausência de registro de um agrotóxico/pesticida em um país ou bloco econômico e o seu registro em outros, não implica necessariamente que aquele ingrediente ativo tenha sido objeto de proibição por riscos à saúde ou ao meio ambiente, tampouco que possa ser proibido no Brasil sem passar por um processo de avaliação dos seus riscos. Cada substância necessita ser avaliada caso a caso e de acordo com as legislações nacionais. Ainda assim, as recomendações de uso, culturas agrícolas a que se destina, quantidade e número de aplicações, que variam de acordo com o clima, tipo de solo, tamanho da área, dentre outros fatores, podem levar a diferentes conclusões na avaliação.
O registro de uma substância ativa, para fitossanidade de plantas, em determinado país ocorre ou deixa de ocorrer por vários motivos que incluem: a demanda por tal substância (existência de cultivos e a incidência de alvos biológicos a que se destina), o grau de eficácia, as estratégias de mercado (concorrência, disponibilidade de produtos de menor preço, disponibilidade de matérias primas dentre outros) e as exigências regulatórias.
Substâncias que possuem baixo volume de comercialização, atendem nichos de mercado, destinam-se a alvos biológicos de baixa incidência ou incidência localizada e baixa margem de retorno financeiro, não possuem motivação para obter o registro em determinados países.
Ainda, substâncias com tais características de mercado não receberão investimentos para atualização regulatória de seus dossiês (pacotes de dados) em países de elevada exigência regulatória, principalmente quando necessário prover estudos de toxicidade crônica, que requerem longo tempo e altos custos para o desenvolvimento.
Em função destas condições, é difícil ocorrer a simultaneidade nos registros de substâncias ativas, notadamente entre países com condições edafo-climáticas diversas como é o caso da União Europeia e do Brasil. Aliado a isso existem as constantes alterações regulatórias implementadas pelo sistema europeu de proteção de plantas.
Base de dados Consultadas:
Brasil: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/agrotoxicos/monografias
Brasil: https://agrofit.agricultura.gov.br
Europa: https://ec.europa.eu/food/plants/pesticides/eu-pesticides-database_en
Estados Unidos: https://www.epa.gov/safepestcontrol/search-registered-pesticide-products
Canadá: https://pesticide-registry.canada.ca/en/product-search.html
Austrália: https://portal.apvma.gov.au/pubcris
Japão: http://www.acis.famic.go.jp/eng/ailist/