A crise hídrica pode levar os agricultores a mudanças positivas nas práticas de irrigação nas áreas de cultivo. E a boa notícia é que já temos tecnologia disponível para isso no Brasil.
Marcus Frediani
A irrigação é uma técnica de fornecimento de água que, quando utilizada em conjunto com as demais boas práticas agronômicas permite alcançar índices máximos de produção. Além disso, ela também tem papel fundamental na redução de perdas e dos riscos climáticos e meteorológicos – tais como a seca e a estiagem – e, de quebra, ainda auxilia na aplicação dos insumos agrícolas. Não é por outro motivo então que, no Brasil, a agricultura irrigada está presente em todas as regiões e caminha em franca expansão.
Contudo, a velocidade desse processo ainda não é a ideal. “Falta uma maior e melhor divulgação sobre o que a prática da irrigação pode trazer em termos de ganho de produtividade e segurança alimentar ao país”, alerta Luís Henrique Bassoi, pesquisador da Embrapa Instrumentação, um dos maiores especialistas da área no Brasil, e referência internacional no assunto. Confira o que ele diz nesta entrevista exclusiva concedida à Revista AgriMotor.
AgriMotor: Bassoi, como você avalia o atual estágio da utilização dos sistemas de irrigação no agronegócio brasileiro?
A área irrigada no Brasil continua em expansão, mas em um ritmo menor que o que poderia ser caso estivéssemos em uma situação de crescimento econômico. Falta também uma maior e melhor divulgação sobre o que a prática da irrigação pode trazer em termos de ganho de produtividade e segurança alimentar ao país. Existe um paradigma a ser quebrado, “a irrigação consome (sic) água”. Os sistemas de irrigação têm apresentado uma boa evolução tecnológica nos últimos anos, como a automação, principalmente nos pivôs centrais e na irrigação localizada, o que contribui para se ter uma maior eficiência no uso da água para irrigação, pois pode-se programar a irrigação e a fertirrigação em horas mais adequadas (por exemplo, a irrigação noturna), e ter uma parada do sistema caso ocorra algum problema, evitando o desperdício de água. Temos bons irrigantes, que precisam ter um maior acesso (conhecimento) sobre a automação. Estes precisam se multiplicar. Temos uma “lição de casa a fazer”.
Você é defensor da ideia de que existe uma “estimativa equivocada” entre as cifras de consumo de água para irrigação agrícola no Brasil e no mundo. Qual a razão dessa dissonância?
Ao se considerar um país com baixos índices de urbanização e de industrialização, que é infelizmente a realidade de países pobres, a porcentagem de água utilizada na agricultura (incluindo a agricultura irrigada) é maior em relação ao volume total de água captado e utilizado neste mesmo país. Assim, esse percentual pode atingir, em alguns casos, valores em torno de 90% ou até um pouco mais. Ao se fazer uma média mundial, aparece algo que varia em torno de 70%. No caso do Brasil, onde temos vários setores usuários (agricultura, urbanização, indústrias, prestação de serviços etc.), então o valor percentual é menor. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), em 2019 a irrigação foi responsável por cerca de 50% da captação de água bruta em mananciais superficiais e subterrâneos no Brasil. E até a média global tem o mesmo valor, ou seja, até o dado muito divulgado há alguns anos pela imprensa em geral (“70% da água no mundo é consumida (sic) pela agricultura”) não condiz com a realidade atual. E aproveito para corrigir, a agricultura não consome água, mas sim utiliza, e grande parte é devolvida ao meio ambiente.
Quando se fala em produtividade agrícola, quais os aspectos e argumentações mais eloquentes que comprovam a relação positiva entre irrigação e produtividade?
Todo ser vivo precisa de água, ou seja, uma planta tem necessidade de água, e se ela é oferecida no momento em que existe essa demanda e na quantidade necessária, o crescimento e o desenvolvimento de uma cultura poderá ser maior e melhor. Isso é básico. Em geral, um cultivo irrigado pode apresentar uma produtividade 100% a 200% maior que o mesmo cultivo sem irrigação. E tem ainda os locais onde sem irrigação não é possível produzir, como as regiões áridas e semiáridas. Os polos de fruticultura no Semiárido não existiriam sem a irrigação.
O desperdício é um problema sério e generalizado no Brasil. Nesse sentido, a correlação que você faz em seu artigo sobre o fato de que quando desperdiçamos alimentos, desperdiçamos água nem sempre é lembrada. Por que, aparentemente, ainda é tão difícil entender (e evitar) esse equívoco tão básico?
Pode parecer banal, mas é preciso fazer com que as pessoas entendam que em cada produto agropecuário (leite, carne, ovo, laranja, abacate, alface, tomate, arroz, feijão etc.), existe uma certa quantidade de água. E uma outra quantidade de água, maior, foi utilizada pelos animais e plantas no seu crescimento e desenvolvimento, mas foi devolvido ao meio ambiente na forma de urina, fezes, transpiração e evaporação. É uma questão de educação ou esclarecimento público. A agricultura, irrigada ou de sequeiro, é o maior setor usuário de água em qualquer país do mundo, e sempre será, pois a utilização da água faz parte dos processos de crescimento e desenvolvimento de animais e plantas, como também ocorre para o ser humano! Essa relação consumo/custo pode ser melhorada, ou seja, diminuir o volume de água utilizado por meio da eficácia (o que fazer com a água) e eficiência (fazer bem o que deve ser feito) no uso da água na agricultura, como também agregar valor ao que se produz.
Como a “irrigação com déficit” pode funcionar como solução estratégica para evitar o problema? E como a tecnologia pode ajudar nesse processo?
A ocorrência de déficit hídrico afeta o crescimento e o desenvolvimento das plantas. Porém, podem existir situações onde não há disponibilidade suficiente de água para a irrigação, ou há a necessidade de priorização do fornecimento de água a um outro setor usuário (por exemplo, a geração de energia ou abastecimento urbano), ou existe um elevado custo para a prática da irrigação. Nessas situações, a aplicação de uma lâmina de água menor que a requerida em determinadas fases fenológicas das culturas, definida como irrigação com déficit ou deficitária, pode trazer menor custo operacional, pequena redução da produtividade, e aumento da qualidade da produção em algumas culturas. Às vezes, um sistema de irrigação mal dimensionado pode aplicar uma lâmina de água que não atende a necessidade das plantas, e então ocorre acidentalmente a irrigação com déficit. Essa prática pode ser aplicada em várias culturas (arroz, feijão, milho, trigo, cana-de-açúcar, soja, algodão, uva, mana, citros, café etc.), mas existem as que são mais e menos tolerantes à falta de água. A prática depende do conhecimento da resposta de uma cultura agrícola à falta de água, tanto quanto ao momento de restrição hídrica como na intensidade desta. Basicamente, pode se valer da utilização de equipamentos ou sensores disponíveis no mercado que medem o quanto de água um solo ou uma planta apresenta, e que também estimem a demanda de evapotranspiração local. Com essas informações, toma-se a decisão de quando e quanto diminuir a lâmina de irrigação em uma cultura. A experiência do irrigante com a cultura também ajuda, e muito!
Em termos objetivos, como a reservação de água – notadamente em regiões nas quais a disponibilidade de água não é grande – pode contribuir para minimizar os riscos da escassez física?
A reservação de água, tecnicamente delineada, pode oferecer uma oportunidade de suprimento de água durante uma parte do ano, ou até mesmo durante todo o ano, dependendo da situação e local, para a prática da irrigação. Evidentemente, quando se tem uma fonte hídrica com múltiplos irrigantes, deve haver um planejamento e gestão adequados. O conflito pode aparecer facilmente caso isso não ocorra. A agricultura irrigada no Brasil precisa quebrar um paradigma sobre quem reserva água, ou seja, que pode prejudicar outros que poderiam utilizá-la. Utilizar a água para qual finalidade (eficácia) e como utilizá-la para o fim determinado (eficiência) são etapas importantes.
De forma geral, o uso de ferramentas mais tecnológicas, como é o caso da automação, exige maior aporte de investimentos. E embora se saiba que avanços e aperfeiçoamentos tecnológicos na agricultura inegavelmente resultam em maior produtividade, muitos produtores ainda hesitam em utilizá-los, por conta dos custos envolvidos. É possível (e como) mudar essa mentalidade quando se fala em irrigação? Aliás, tais custos são, efetivamente, muito elevados?
Muitos componentes utilizados em sistemas de irrigação e em sua automação são importados. Quando o câmbio está desfavorável para os brasileiros, o custo em real aumenta. O produtor terá que ser bem orientado para saber o quanto vai investir e o quanto poderá receber em termos de economia de água e de energia e aumento de produtividade. Além disso, o produtor ou o técnico ou o operador responsável tem que ser capacitado, tem que adquirir o conhecimento sobre como operar ou manejar algo que demandou um investimento. Casos de sucesso, evidentemente como resultado de bons projetos, que por sua vez requerem um certo tempo para serem bem delineados, devem ser divulgados corretamente, sem exageros. Pode-se então derrubar alguns mitos como “é caro” ou “não vale a pena”.
Finalmente, o que existe em termos de “estado da arte” quando se fala em irrigação agrícola no Brasil? O que existe de inovação nesse campo e quais são os equipamentos mais modernos e o que existe em termos de novidades nessa área para eficientizar e ampliar seu uso?
Na irrigação do Brasil, pode-se encontrar situações muito variadas, desde o irrigante que se utiliza de sulcos, com uma eficiência não tão alta; ou o irrigante que utiliza um calendário fixo para aplicação de água, independente do sistema de irrigação; ou o irrigante que se vale do uso da automação e acesso remoto às informações do sistema de irrigação. Pode-se listar como inovação o uso de sistemas automatizados (ligam e desligam de acordo com a programação estabelecida); a coleta de dados de solo e de clima por sensores automatizados e a transmissão destes para uma nuvem ou banco de dados; a conectividade no campo, que está caminhando para o 5G; a irrigação de precisão, que é aquela em que a aplicação de lâmina de água varia espacialmente devido à variabilidade do solo e/ou do desenvolvimento da cultura; o uso de previsão do tempo para verificar a possibilidade de adiar uma aplicação de água, entre outras. Mas faço aqui uma analogia: há alguns anos celulares não eram tão acessíveis. Então, o que quero dizer é que já existe uma oferta de tecnologias que, gradativamente, estão se tornando cada vez mais acessíveis ao irrigante.